Extra

Diarista perde salários e Bolsa Família em vício de apostas online na zona leste de SP

Moradora de Guaianases desenvolve transtorno do jogo após entrar em plataformas de bets, enquanto cresce a busca por tratamento na rede pública e órgãos apontam risco de endividamento entre beneficiários do Bolsa Família

01/12/2025 às 06:37 por Redação Plox

A diarista Wanessa Silva, moradora de Guaianases, na zona leste de São Paulo, trabalha com o que aparece: faz bicos de faxina e já atuou como camareira e atendente de telemarketing. Há dois anos, porém, o pouco dinheiro que ganha passou a ter um único destino: as apostas em jogos de azar.

Ela está entre as 114 pessoas que, em 2025, procuraram tratamento para o vício em bets na rede pública de saúde do município — número que triplicou em relação a 2023, quando foram registrados 35 atendimentos. Wanessa também integra o grupo de 40 milhões de brasileiros que fizeram pelo menos uma aposta ou jogo online no último ano, segundo levantamento da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil).


Wanessa Silva enfrenta transtorno de jogo por dependência em apostas online; número de atendimentos triplica nas unidades públicas de saúde da capital

Wanessa Silva enfrenta transtorno de jogo por dependência em apostas online; número de atendimentos triplica nas unidades públicas de saúde da capital

Foto: Reprodução/Agência Brasil


Em entrevista ao Metrópoles, Wanessa contou que começou a apostar depois de ver uma publicação de uma amiga nas redes sociais.

Perguntei se era verdade que ela estava ganhando R$ 200 por dia e ela me explicou. Eu estava sem dinheiro, então fiz um cadastro e depositei R$ 40. Aí começou a palhaçada — Wanessa Silva

Ganhos rápidos, perdas ainda maiores

No início, a experiência pareceu promissora. Em um único dia, a diarista chegou a ganhar R$ 2 mil. O valor, porém, era imediatamente reinvestido em novas apostas. O que começou como uma tentativa de complementar a renda virou, pouco a pouco, um caminho sem volta.

Wanessa desenvolveu o chamado transtorno do jogo, caracterizado pela dificuldade de controlar o tempo e o dinheiro gastos, à semelhança de outras dependências. As consequências incluem conflitos familiares, endividamento e comorbidades como ansiedade, depressão e ideações suicidas.

A situação financeira da diarista desabou. Ela não consegue calcular quanto perdeu desde que começou a jogar, mas relata que já chegou a depositar R$ 8 mil em uma única plataforma. Além do prejuízo financeiro, perdeu o emprego como camareira em razão do vício. Afirmou ter pedido demissão após fazer um acordo com a empresa e gastou toda a rescisão de R$ 6 mil em jogos de azar.

Dependência que consome renda e benefícios sociais

O descontrole financeiro de Wanessa não é um caso isolado. De acordo com o levantamento da CNDL e do SPC Brasil, 19% dos apostadores comprometeram a renda com jogos de azar; 17% deixaram de pagar alguma conta e 29% já tiveram o nome negativado por gastos com jogo online.

O impacto atinge também programas sociais. Segundo o Tribunal de Contas da União (TCU), 27% dos R$ 13,7 bilhões pagos pelo Bolsa Família em janeiro de 2025 foram parar em empresas de aposta. O tema motivou medidas de proibição no Ministério da Fazenda.

Wanessa admite ter usado o benefício duas vezes para apostar. Em uma tentativa de se proteger, decidiu transferir o aplicativo em que o dinheiro é depositado para o celular da filha, de 13 anos, que hoje controla as finanças da mãe.

A “situação financeira afundada” acabou afetando também o casamento. A diarista relata que, no início, recebia ajuda constante do marido, mas o clima se deteriorou à medida que as contas deixavam de ser pagas e o salário sumia nas apostas. Parentes próximos acreditam que ela abandonou o jogo, e o marido avisou que, se descobrir que ela continua apostando, pedirá a separação.

Busca por tratamento e sensação de isolamento

Apesar de seguir apostando com frequência, Wanessa diz que, há cerca de quatro meses, percebeu a dimensão do problema ao notar que passava oito horas trabalhando para ganhar R$ 140, valor que gastava logo em seguida em jogos. Ao saber que os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) passariam a oferecer atendimento específico para vício em jogos, ela decidiu procurar ajuda.

Ela buscou o Caps AD Guaianases e foi orientada a participar de duas reuniões em grupo antes do início do tratamento. Na segunda reunião, desistiu, relatando se sentir deslocada em meio a pessoas que tratavam dependência de álcool e drogas e que reagiam com risos quando ela mencionava o jogo como seu problema.

Para o psicólogo Edilson Braga, pesquisador do Ambulatório do Transtorno do Jogo do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (IPq-HCFMUSP), a falta de capacitação profissional é um dos principais entraves no atendimento a dependentes de apostas, tanto na conduta medicamentosa quanto na psicoterapêutica. Ele aponta que faltam profissionais na atenção do SUS e que muitos não sabem como lidar com esses casos, recorrendo ao ambulatório especializado.

Sem o apoio efetivo de especialistas, Wanessa tentou outras estratégias. Recorreu a uma plataforma que bloqueia aplicativos de aposta, mas encontrou maneiras de driblar a ferramenta nos momentos de recaída. Ela relata sentir forte mal-estar físico e emocional quando fica sem jogar e diz que, mesmo ao excluir os aplicativos, volta a apostar ao se deparar com propagandas nas redes sociais.

Na avaliação da diarista, a única saída concreta seria o governo tirar do ar e bloquear todas as plataformas. As apostas esportivas e cassinos online são legalizados no Brasil desde 2018 e foram regulamentados por lei em 2023.

Questionário para identificar dependência em jogos

O Ambulatório do Transtorno do Jogo do Hospital das Clínicas elaborou 12 perguntas para auxiliar na identificação da dependência em jogos de azar. Se a resposta for “sim” para cinco ou mais delas, a recomendação é procurar ajuda especializada:

1. Quando você joga, você volta um outro dia para recuperar o que perdeu?

2. Você já afirmou estar ganhando dinheiro com o jogo sem realmente estar, quando na verdade, você estava perdendo?

3. Você já se sentiu culpado pela forma como você joga ou devido às consequências do seu jogo?

4. Você já quis parar de jogar, mas achou que não conseguiria?

5. Você já escondeu comprovante de aposta, cartão de loteria, dinheiro de jogo ou outros sinais de jogo da sua esposa, filhos ou outra pessoa importante para você?

6. Você já discutiu com as pessoas com quem você mora a respeito de como administra seu dinheiro?

7. Você já pegou emprestado dinheiro de alguém e não pagou devido ao seu hábito de jogar?

8. Você já pegou emprestado dinheiro para jogar ou para pagar dívida de jogo de bancos, companhias de empréstimo ou companhia de crédito?

9. Você já pegou dinheiro no cartão de crédito para jogar ou pagar dívidas de jogo?

10. Você já trocou ações, apólices ou outros títulos por dinheiro para jogar ou pagar dívidas de jogo?

11. Você vendeu propriedade pessoal ou da família para obter dinheiro para o jogo?

12. Você já usou cheque especial ou cheque sem fundo para jogar ou pagar dívidas de jogo?

Como respondem os órgãos de saúde

Questionada sobre o tratamento para transtorno do jogo na rede pública, a Secretaria Municipal da Saúde informou que promove a qualificação contínua das equipes da Atenção Primária e dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) por meio de ações de educação permanente, incluindo discussões de casos, acompanhamentos conjuntos e capacitações, em linha com as diretrizes do Ministério da Saúde.

Segundo a pasta, as 479 Unidades Básicas de Saúde (UBSs) funcionam como portas de entrada para acolhimento, avaliação por equipe multiprofissional e, quando necessário, encaminhamento para um projeto terapêutico. A Rede de Atenção Psicossocial (Raps) conta com 103 Caps, que realizam atendimento inicial sem necessidade de agendamento ou encaminhamento prévio.

Já a Secretaria de Estado da Saúde (SES) afirmou apoiar a implementação da política voltada à abordagem terapêutica da dependência em jogos de azar, oferecendo capacitação e suporte às equipes de saúde mental da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) e da Atenção Básica em todo o estado de São Paulo. A secretaria informou ainda que, nos próximos meses, serão promovidas ações voltadas à formação de profissionais e ao fortalecimento de parcerias.

Compartilhar a notícia

V e j a A g o r a