Enem 2024 destaca a Língua da Tabatinga, símbolo de ancestralidade afro-brasileira em Minas Gerais
O exame do Enem do último domingo (3/11) pôs em foco pertencimento e ancestralidade da Língua Tabatinga de Bom Despacho, em Minas Gerais
Por Plox
05/11/2024 08h54 - Atualizado há 8 meses
A prova do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), realizada no último domingo (3), trouxe à tona o tema da identidade e ancestralidade afro-brasileira ao abordar a Língua da Tabatinga, uma tradição preservada na cidade de Bom Despacho, no Centro-Oeste de Minas Gerais. Reconhecida como patrimônio imaterial do município em 2023, a língua representa um legado cultural e linguístico, mantido vivo por uma pequena comunidade de falantes.
A origem da Língua da Tabatinga e sua importância cultural
A Língua da Tabatinga é um vestígio das práticas linguísticas dos escravizados trazidos ao Brasil durante o período colonial. Sônia Queiroz, autora do livro “Pé preto no barro branco: a língua dos negros da Tabatinga”, explica que essa língua surgiu da mistura de vários idiomas africanos, resultado de uma política colonial que reunia pessoas de diferentes regiões da África, forçando-as a se comunicar de forma improvisada. Ao longo do tempo, os habitantes de Bom Despacho passaram a adotar essa forma de comunicação como um traço de identidade local.

A abordagem da Língua da Tabatinga no Enem foi celebrada por especialistas, que destacam seu papel na valorização da cultura afro-brasileira. A professora Thainá Rocha da Silva, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), explica que a língua carrega memórias de resistência contra a opressão colonial e o racismo linguístico. “São heranças invisibilizadas, mas que resistem”, afirma Thainá, que destacou a importância de ver jovens refletindo sobre a herança afro-brasileira no exame.
Guardiãs da língua: Dona Fiota e Marli Costa
A preservação da Língua da Tabatinga é fruto do trabalho de mulheres como Maria Joaquina da Silva, conhecida como Dona Fiota (1928-2012). Ela foi uma importante guardiã da tradição oral na região, ensinando o idioma às crianças e compartilhando-o na comunidade. Atualmente, Marli Costa, de 63 anos, é uma das poucas falantes restantes da língua, aprendida quando criança com Dona Fiota. Para Marli, a língua era uma forma de defesa e resistência, especialmente nas relações de trabalho nos campos, onde ela e outros trabalhadores a usavam como comunicação secreta.
“Aprendi tudo que sei com Maria Joaquina. Ela dizia: ‘Nossa língua não pode acabar, é nossa forma de nos defendermos’”, conta Marli, que ainda se emociona ao ver a língua ser reconhecida.
Patrimônio e o risco de desaparecimento
O reconhecimento oficial da Língua da Tabatinga como patrimônio imaterial foi impulsionado por Barbara Freitas, historiadora de Bom Despacho. Segundo ela, na década de 1980, cerca de 200 pessoas ainda falavam o idioma. Hoje, esse número é incerto, o que reforça a necessidade de esforços de preservação. Para Freitas, a salvaguarda da língua simboliza um reconhecimento da cultura afro-brasileira e do movimento negro no Brasil.
A ligação com o passado e o desafio da preservação
Marli, ao saber que seu neto Pedro Henrique Costa fez a prova do Enem que mencionou a língua, ficou “feliz e emocionada”. Ela vê o reconhecimento no exame como uma forma de manter viva a memória de seus ancestrais. Para ela, a palavra “tabatinga” remete ao bairro onde a língua floresceu, caracterizado pela argila esbranquiçada do solo, nome originado do tupi, revelando também o sincretismo cultural brasileiro.