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Clonazepam: calmante mais vendido no Brasil gera dependência silenciosa entre idosos

Mais de 2 milhões de brasileiros acima de 60 anos utilizam clonazepam, estimulando debates sobre dependência e efeitos nocivos ligados ao envelhecimento

05/11/2025 às 10:50 por Redação Plox

O clonazepam, calmante mais consumido do Brasil, faz parte da rotina de milhões de pessoas, principalmente idosos. Estima-se que ao menos 2 milhões de brasileiros com mais de 60 anos utilizam o medicamento.

Somente em 2024, segundo dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), foram comercializadas 39 milhões de caixas do remédio. Embora o uso deva se restringir a crises agudas de ansiedade ou insônia, o consumo prolongado se consolida e favorece o desenvolvimento de dependência.

Nos consultórios, os relatos são frequentes: “Se eu não tomar clonazepam, não durmo”; “Sem ele, fico agitada”. Segundo Alan Eckeli, especialista em Medicina do Sono e professor da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto, essas frases são quase sempre ditas por pessoas acima dos 60 anos e evidenciam a dependência silenciosa.

O clonazepam, o sedativo mais utilizado no Brasil, integra o dia a dia de milhões de indivíduos

O clonazepam, o sedativo mais utilizado no Brasil, integra o dia a dia de milhões de indivíduos

Foto: Reprodução/Freepik

Muitos chegam com a receita renovada há anos, sem lembrar quando começaram a usar o remédio. O efeito é rápido e eficaz, e é exatamente isso que o torna perigoso. O medicamento funciona — mas, equivocadamente, passa a ser tomado sem fim. Alan Eckeli

Segundo Eckeli, a banalização começa ainda na prescrição, pois muitas vezes o clonazepam é indicado por profissionais sem formação em sono ou saúde mental. A insônia é tratada como sintoma, não como doença — e o tratamento se eterniza.

Clonazepam: pontos-chave do uso

  • Indicação apenas para crises agudas, mas acaba se tornando uso rotineiro;
  • Muitas vezes, é utilizado para amenizar vazios emocionais como solidão, luto ou dor crônica;
  • Há resistência dos pacientes em interromper a medicação, mesmo após anos de uso contínuo;
  • O uso prolongado pode causar perda de memória, risco de quedas e prejuízo cognitivo;
  • A prescrição excessiva tem raízes nos anos 1990;
  • O uso sem acompanhamento adequado atrapalha a qualidade do sono;
  • O processo de desmame é gradual, exige acompanhamento e mudanças de rotina.

O benzodiazepínico mais consumido

Conhecido pelo nome comercial Rivotril, o clonazepam compõe a classe dos benzodiazepínicos — medicamentos que atuam sobre o neurotransmissor GABA, desacelerando a atividade cerebral. É indicado oficialmente para epilepsia, transtornos convulsivos, crises de pânico, ansiedade e distúrbios do sono, conforme a bula aprovada pela Anvisa.

O efeito calmante surge rapidamente e pode durar até 24 horas devido à liberação lenta da substância. Porém, o uso contínuo sem indicação específica é desaconselhado e deve ser limitado às situações agudas, com supervisão médica.

Levantamento nacional de 2022 mostra que 2 milhões de idosos utilizam benzodiazepínicos no Brasil, sendo o clonazepam responsável por 41,3% desse consumo. Apesar da alta demanda, trata-se de um medicamento de tarja preta, vendido apenas com receita controlada, que é registrada nacionalmente.

Dados da Anvisa confirmam o protagonismo: 39 milhões de unidades vendidas em 2024 — volume superior ao de outros ansiolíticos do mesmo grupo, como alprazolam (20,5 milhões), bromazepam (15,3 milhões) e diazepam (7,7 milhões). Até medicamentos considerados alternativas para insônia, como zolpidem, ficam atrás, com 15,9 milhões de unidades vendidas este ano.

Razões para a alta procura

A popularidade do clonazepam se explica por fatores científicos e culturais. O geriatra Pedro Curiati, do Hospital Sírio-Libanês, ressalta que a longa meia-vida do remédio mantém seu efeito por até 24 horas, resultando em sono mais contínuo e sensação prolongada de calma, mas também em acúmulo da substância no organismo, elevando o risco de confusão mental, quedas e dependência nos idosos.

Além do efeito farmacológico, o baixo custo e o fácil acesso, inclusive no Sistema Único de Saúde (SUS), fizeram do clonazepam parte do cotidiano popular. O nome Rivotril tornou-se amplamente reconhecido após intensa divulgação quando o produto chegou ao mercado.

Dependência física, emocional e social

Segundo a psiquiatra Simone Kassouf, entre 20% e 25% de seus pacientes já chegam usando clonazepam, frequentemente há anos e sem revisão médica. O alívio sintomático é imediato, mas a causa subjacente dificilmente é solucionada.

É muito comum recebermos idosos que tomam benzodiazepínicos há anos, sem qualquer revisão da prescrição. A medicação gera conforto sintomático, mas não resolve o problema de fundo. Simone Kassouf

O uso prolongado demanda doses progressivamente maiores, estabelecendo um ciclo de dependência. A psiquiatra Camilla Pinna, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), explica que, ao usar o remédio regularmente, o cérebro passa a associar o relaxamento ao medicamento.

Ao tentar interromper o uso, sintomas como ansiedade e insônia retornam com maior intensidade — o chamado efeito rebote. Para muitos idosos, o calmante preenche também vazios emocionais, como solidão e luto, criando um vínculo difícil de ser rompido.

Esse cenário torna o desmame ainda mais difícil, um desafio para os profissionais de saúde: embora o efeito imediato agrade, o uso prolongado cobra alto preço, com perda de memória, risco de quedas e dano cognitivo.

O calmante de uma geração

Muitos usuários começaram a tomar benzodiazepínicos na década de 1990, época de grande prescrição e percepção de solução rápida para problemas do sono. Hoje, com 70 ou 80 anos, a medicação segue integrada ao estilo de vida.

O coordenador do Departamento de Medicina do Sono da Associação Brasileira de Psiquiatria, Almir Tavares, destaca que o envelhecimento brasileiro ocorre em meio a doenças crônicas e desinformação. O uso sem acompanhamento médico adequado impede o alcance do sono reparador, já que o medicamento limita os estágios mais profundos do sono, como o REM, afetando a recuperação do corpo.

Desmame: processo gradual e supervisionado

Entre especialistas, há consenso sobre a necessidade de desmame lento e com acompanhamento profissional. Camilla Pinna reitera que a interrupção abrupta deve ser evitada e, sempre que possível, o foco do tratamento deve ser na causa do quadro.

A terapia cognitivo-comportamental é considerada tratamento de primeira linha para insônia e ansiedade, porém ainda tem acesso restrito no sistema público. Pequenas mudanças de hábito, como atividade física, exposição à luz natural, rotina regular de sono e evitar telas e cafeína à noite, podem contribuir efetivamente para a melhora do quadro.

O retrato de um envelhecimento ansioso

A trajetória dos calmantes reflete a busca contínua por um sono tranquilo, mas sem consequências. As décadas de 1950 e 1960 foram marcadas pelo uso de barbitúricos — potentes, mas arriscados devido à toxicidade. Com o tempo, surgiram os benzodiazepínicos, como diazepam e, posteriormente, clonazepam, vistos como uma revolução por reduzirem o risco de overdose.

No entanto, o uso prolongado resultou em outro tipo de dependência: a do uso crônico. Nos anos 2000, as “drogas Z”, como zolpidem, apareceram como alternativas modernas, mas também carregam potencial de abuso e efeitos adversos semelhantes. Compostos mais recentes, como ramelteona e antagonistas da orexina, prometem induzir o sono de forma mais fisiológica e sem dependência, porém ainda apresentam custo elevado e acesso limitado, perpetuando a dependência de medicamentos antigos.

Os especialistas alertam que esse padrão reflete um envelhecimento ansioso e solitário. Muitos idosos recorrem ao clonazepam não apenas por insônia ou ansiedade, mas também por solidão, luto ou falta de apoio familiar. Esses fatores emocionais têm grande peso e exigem acolhimento, pois conversas, vínculos e atividades podem ser tão importantes quanto o medicamento.

O geriatra Pedro Curiati acrescenta que sentimentos de tristeza e retraimento na terceira idade são muitas vezes confundidos com ansiedade, motivando prescrições inadequadas de calmantes. Ele reforça que a depressão é frequente nesse período e pode ter múltiplas causas, incluindo a perda de vínculos e as limitações impostas por doenças crônicas.

O tratamento adequado envolve diagnóstico preciso, uso de antidepressivos — que não geram dependência —, além de psicoterapia e, sempre que possível, terapia cognitivo-comportamental.

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