Mães brasileiras fogem da violência e são acusadas de sequestro em Portugal
Tratado internacional obriga retorno de crianças, ignorando denúncias de abuso e colocando mulheres em situação de vulnerabilidade
Por Plox
14/03/2025 11h41 - Atualizado há 1 dia
Após anos suportando agressões e buscando ajuda sem sucesso, Tatiana

A situação de Tatiana reflete um problema recorrente enfrentado por mulheres brasileiras que tentam escapar da violência doméstica no exterior. A Convenção de Haia, assinada tanto pelo Brasil quanto por Portugal, estabelece que crianças levadas para outro país sem o consentimento de um dos responsáveis devem ser imediatamente devolvidas. Na prática, essa regra tem condenado mulheres vítimas de violência a retornarem os filhos aos agressores, ignorando o histórico de abusos.
Para muitas mães, o desfecho é ainda mais cruel: além de perderem a guarda dos filhos, passam a ser tratadas como criminosas. Dados do Ministério das Relações Exteriores (MRE) apontam que Portugal lidera o número de brasileiras que buscaram auxílio consular para casos de subtração de menores. Em disputas de guarda, ocupa o segundo lugar, atrás apenas da Alemanha.
Em 2023, mais de 1.500 brasileiras recorreram aos consulados em busca de proteção contra a violência de gênero. Portugal aparece no topo das denúncias de violência vicária, em que filhos são usados como instrumento de vingança contra a mãe. O levantamento da ONG Revibra Europa confirma o impacto da Convenção de Haia sobre as vítimas: entre 2019 e 2022, a entidade atendeu 278 casos relacionados ao tratado, sendo que 273 envolviam mães brasileiras denunciadas por rapto.
O histórico de abuso raramente é levado em consideração. Entre os processos analisados, em 33 casos, as crianças foram devolvidas aos pais acusados de violência física, sexual e psicológica. Janaína Albuquerque, colaboradora da ONG, ressalta que o tratado foi criado em 1980 e não contempla a evolução dos direitos das mulheres e crianças. “Ninguém pensava em violência doméstica na época”, explica.
As dificuldades enfrentadas por mães brasileiras na justiça portuguesa também envolvem preconceito. A advogada afirma que há um viés discriminatório contra imigrantes, especialmente quando os pais das crianças são nativos do país. Esse cenário contribui para que as decisões favoreçam os agressores, privando as mães do convívio com seus filhos.
Gabriela, outra vítima do sistema, sentiu na pele essa desigualdade. Após fugir com a filha em 2021, foi condenada a quatro meses de prisão por subtração de menor e obrigada a pagar uma indenização ao ex-marido. O homem, que mantinha um histórico de agressões, nunca foi punido. Sem condições de recorrer imediatamente, Gabriela perdeu a guarda e não vê a filha há quase quatro anos.
“Eles vão nos chamar de loucas. Sempre fazem isso”, denuncia. Durante o processo, foi alvo de tentativas de desqualificação e viu sua profissão ser questionada para justificar uma suposta conduta inadequada. “Disseram que eu era massagista e queriam saber que tipo de massagens eu fazia. Sou especialista em medicina chinesa”, desabafa.
Casos como o de Cátia, que saiu do Brasil para viver com o companheiro em Portugal, também expõem o despreparo das autoridades para lidar com a violência doméstica. Ao denunciar o agressor, foi acusada de sequestro e passou meses lutando para manter o filho ao seu lado. O processo contra o ex-marido foi arquivado, e a justiça determinou que a criança continue vendo o pai a cada 15 dias. “Me perguntavam: ‘Se era tão ruim, por que casou? Por que teve um filho?’. O sentimento é de impotência”, lamenta.
O preconceito contra mulheres brasileiras foi tema da dissertação da psicóloga Mariana Braz, que vive em Portugal há sete anos. Ela aponta que o estereótipo hiperssexualizado das brasileiras reforça o ciclo de violência e descredibiliza as denúncias. Para combater essa realidade, criou a plataforma @brasileirasnaosecalam, que oferece suporte psicológico e informações sobre direitos e assistência jurídica.
O Consulado do Brasil em Lisboa reconhece a crescente demanda por apoio a vítimas de violência doméstica e realiza cerca de 200 atendimentos mensais. O órgão oferece orientação jurídica, psicológica e auxílio documental. No próximo dia 27 de março, será inaugurado o Espaço da Mulher Brasileira (EMuB), que busca ampliar esse suporte com palestras e programas de empreendedorismo para fortalecer a independência financeira das mulheres.
No Brasil, a Convenção de Haia está sendo debatida no Parlamento. O Projeto de Lei 565/2022, já aprovado na Câmara, prevê que a violência sofrida pela mãe seja considerada também uma violência contra os filhos, impedindo o retorno das crianças ao país do agressor. No Supremo Tribunal Federal (STF), duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 4245 e 7686) questionam a aplicação do tratado à luz dos princípios constitucionais brasileiros.
Grupos de apoio e entidades de direitos humanos seguem pressionando para que mudanças sejam feitas, garantindo que mães e crianças não sejam condenadas a um ciclo contínuo de violência e injustiça.
Os nomes foram alterados para preservar a identidade das vítimas.