Brasil acumula anistias que evitam punições e acirram disputas políticas
Debate sobre perdão a Bolsonaro reacende críticas a histórico de anistias que não responsabilizam agressores e reforçam impunidade
Por Plox
19/09/2025 13h05 - Atualizado há 3 dias
O debate sobre anistiar o ex-presidente Jair Bolsonaro e seus apoiadores, condenados por atos antidemocráticos ligados às eleições de 2022, não é um fenômeno isolado na história do Brasil. Desde o Império até os tempos mais recentes, o país acumulou episódios em que perdões oficiais foram concedidos em nome da pacificação — muitas vezes, à custa da justiça e da responsabilização.

A pressão atual cresceu depois que Bolsonaro foi condenado por tentativa de golpe. Na Câmara, um projeto que pode perdoar envolvidos nas manifestações extremistas ganhou regime de urgência. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, chegou a declarar que, se eleito presidente em 2026, concederia anistia como seu \"primeiro ato\". Fora do país, Eduardo Bolsonaro busca apoio do governo americano, e até Donald Trump entrou na discussão, criticando a Justiça brasileira e defendendo Bolsonaro.

A proposta de anistia, no entanto, resgata uma prática antiga da política brasileira: usar o perdão como instrumento de reconciliação, mas sem curar as feridas sociais. Segundo o historiador Carlos Fico, autor do livro Utopia autoritária brasileira, o Brasil teve pelo menos 15 tentativas de golpe desde 1889, e seis delas foram seguidas de algum tipo de anistia. Esses episódios, avaliam especialistas, foram marcados por impunidade, pouca transparência e ausência de diálogo real.
A professora Carla Simone Rodeghero, da UFRGS, observa que a anistia tem sido usada para evitar responsabilizações, com discursos de conciliação frequentemente manipulados pelas elites políticas. Já o pesquisador Marcelo Torelly aponta que as anistias chamadas \"em branco\" — aquelas concedidas sem confissão nem responsabilização — tendem a aumentar a polarização e o ressentimento político.
No contexto internacional, países como Argentina, Chile e África do Sul adotaram modelos diferentes. A Argentina, por exemplo, reabriu julgamentos décadas após a redemocratização, condenando altos oficiais como Jorge Rafael Videla. No Chile, a Justiça reinterpretou a lei de anistia da ditadura de Pinochet para permitir punições. Na África do Sul, o perdão foi condicionado à confissão pública dos crimes.
O Brasil, por outro lado, manteve um histórico de anistias que beneficiam agressores sem exigir contrapartidas. Desde o perdão imperial concedido a José Bonifácio, passando pelo Acordo de Poncho Verde na Guerra dos Farrapos e pela anistia traída da Revolta da Chibata, até a lei de 1979, usada para blindar agentes da ditadura, os exemplos são muitos.
A Constituição de 1988 tentou mudar essa lógica, definindo que anistias devem ser propostas pelo Legislativo. Mas, na prática, a interpretação do Supremo Tribunal Federal em 2010 manteve o perdão a crimes cometidos por agentes do Estado durante a ditadura militar.
A Lei da Anistia de 1979, embora tenha permitido o retorno de exilados e a liberdade de presos políticos, também concedeu perdão a torturadores e outros agentes da repressão, ao considerar seus crimes como \"conexos\" aos políticos. \"Foi quase que um tiro no pé\", diz Rodeghero. Segundo ela, não houve sequer o reconhecimento de que tais crimes existiram.
Mesmo ações como a Comissão Nacional da Verdade, criada em 2011 para apurar violações entre 1946 e 1988, enfrentaram resistência. Ainda assim, a comissão deixou legados como a valorização das normas internacionais e o enfrentamento da negação histórica.
Nos tempos mais recentes, a discussão volta com força com os condenados pelos ataques de 8 de janeiro de 2023. Para Marcelo Torelly, há espaço para discutir penas alternativas para quem não cometeu violência, como serviços comunitários ou cursos de cidadania. Mas ele é enfático:
\"Dizer 'está tudo bem, vá para casa' não é reconciliação\"
, afirma.
A historiadora Carla Rodeghero reforça que o contexto atual é distinto: trata-se de crimes cometidos durante a vigência plena da democracia, com instituições funcionando e espaço legal para manifestações. Por isso, perdoar sem responsabilizar, segundo os especialistas, pode ser um retrocesso perigoso.
Ao longo da história brasileira, a anistia tem sido usada como ferramenta política para recompor alianças, acalmar crises ou reorganizar poderes — mas raramente como mecanismo de justiça. As discussões atuais mostram que, mesmo em 2025, o país ainda lida com os reflexos de uma tradição que valoriza o esquecimento em vez da reparação.