Prontuários médicos analisados por IA antecipam agravamento de violência contra mulheres em até 92 dias
Tecnologia identifica sinais precoces cruzando dados de saúde e registros de agressões
Por Plox
21/12/2024 17h28 - Atualizado há 2 meses
Mulheres vítimas de violência começam a alterar seus padrões de visita às unidades básicas de saúde 92 dias antes do agravamento do caso. Esse comportamento inclui o aumento da busca por atendimento médico, queixas relacionadas à saúde mental, como crises de ansiedade, e sinais de agressões físicas. Essas informações, obtidas em um estudo inédito realizado em Recife pela organização Vital Strategies e pela FrameNet Brasil, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), demonstram como a inteligência artificial pode prever situações de risco iminente.

Dados analisados
A pesquisa examinou prontuários médicos de 13 mil mulheres ao longo de dez anos, cruzando-os com o Sistema de Informações de Agravos de Notificação (Sinan), que registra compulsoriamente casos de violência. A análise semântica revelou padrões que podem antecipar casos de feminicídio, oferecendo uma oportunidade de intervenção antes que os casos cheguem a hospitais, prontos-socorros ou delegacias.
Um exemplo alarmante citado foi de uma mulher cujo óbito foi classificado como acidente, mas cujo prontuário médico indicava que ela havia sido arremessada de um caminhão pelo parceiro. Esse tipo de subnotificação demonstra a urgência de integrar sistemas de saúde e inteligência artificial para identificar padrões de violência.
Prevenção e redução da subnotificação
Segundo o estudo, mais de 60% dos feminicídios ocorreram 30 dias após a notificação inicial de violência no Sinan. Para Sofia Reinach, diretora adjunta do Programa de Prevenção de Violências da Vital Strategies, essa integração entre dados é essencial:
"Uma notificação tardia é uma oportunidade perdida em agir para evitar a hospitalização ou morte daquela mulher."
O projeto também identificou que apenas 19,5% das notificações de violência contra a mulher no Sinan vêm da atenção básica. A maioria ocorre em hospitais e prontos-socorros, evidenciando a necessidade de treinar equipes para identificar sinais precoces.
Resultados promissores em outros locais
Um estudo semelhante conduzido pela Vital Strategies em Goiânia mostrou que o risco de morte caiu cerca de 60% entre mulheres que tiveram casos de violência notificados e encaminhados para serviços especializados. A identificação precoce não apenas protege as vítimas, mas também permite o planejamento de ações preventivas.
Privacidade dos dados
Tiago Torrent, coordenador do FrameNet Brasil, destacou que todos os dados usados no estudo foram anonimizados. Ele explicou que essa medida vai além de ocultar nomes ou endereços: "É necessário remover qualquer informação sensível que possa identificar as vítimas."
A análise gerou 6.000 conjuntos de anotações a partir de sinais como crises de ansiedade, permitindo treinar a inteligência artificial para identificar padrões de comportamento distintos entre vítimas de violência e outras mulheres que frequentam a atenção básica, geralmente por condições como hipertensão e diabetes.
Desafios na identificação da violência
Entre as mulheres com notificações no Sinan, o abuso sexual é a forma mais comum de violência relatada, frequentemente cometido por membros da família ou pessoas próximas. A assistente social Maria das Graças Ferreira da Silva, que atua na atenção primária em Recife, destacou: "A violência começa de forma velada, com agressões psicológicas que destroem a autoestima da vítima."
Profissionais de saúde enfrentam dificuldades em notificar casos por medo de retaliações. Segundo Maria das Graças, agentes comunitários que vivem nas mesmas comunidades que as vítimas relutam em registrar abusos, mesmo sendo obrigados a fazê-lo.
Capacitação e próximos passos
Cerca de 460 profissionais da atenção básica no Recife já foram treinados para identificar e manejar casos de violência contra a mulher. A secretária municipal da Saúde, Luciana Albuquerque, destacou que o estudo permitirá a criação de um painel com dados detalhados sobre as vítimas, incluindo localização e perfil. Essa ferramenta ajudará a priorizar bairros com baixa notificação e a direcionar recursos para treinamento e capacitação.
Apoio ao projeto
O projeto tem apoio da Umane, uma organização civil voltada à promoção da saúde pública, e busca transformar os dados obtidos em estratégias concretas para reduzir a violência contra a mulher e salvar vidas.