Julgamento de Bolsonaro aponta possibilidade de ilegalidades no STF

Especialistas apontam ao menos sete falhas na condução do processo, mesmo reconhecendo provas para condenação

Por Plox

23/08/2025 10h35 - Atualizado há cerca de 9 horas

O Supremo Tribunal Federal (STF) se prepara para julgar, no dia 2 de setembro, o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), acusado de liderar um plano para impedir a posse de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) em 2023. A denúncia abrange ainda outros sete investigados. Embora criminalistas vejam elementos suficientes para sustentar a acusação de tentativa de golpe, a forma como o processo foi conduzido gera críticas de diversos especialistas em direito penal.

Imagem Foto: reprodução


A pedido do Estadão, cinco especialistas analisaram os rumos da ação penal. São eles: Maíra Beauchamp Salomi, Marcelo Crespo, Renato Vieira, Welington Arruda e Priscila Pamela Santos. O grupo destaca sete pontos considerados controversos no trâmite do caso.


1. STF é o foro adequado?


O primeiro ponto contestado é se caberia ao STF julgar Bolsonaro. Quando a ação foi aberta, ainda vigorava o entendimento de que ex-presidentes deveriam responder na primeira instância da Justiça. Foi só em abril de 2024 que o STF mudou essa posição, permitindo que crimes cometidos durante o mandato seguissem sob sua alçada — mudança que veio após a denúncia contra Bolsonaro.


Segundo Maíra Salomi, o Supremo não seria o foro apropriado, já que o próprio Lula foi julgado inicialmente na primeira instância, em Curitiba. Já Welington Arruda critica a justificativa de “conexão” com parlamentares com foro privilegiado, e o argumento de que os crimes tinham como alvo o próprio STF. Para ele, a interpretação “esticada” compromete o princípio do juiz natural, que garante que ninguém será julgado por tribunal de exceção.


2. Acúmulo de funções compromete imparcialidade


Outro ponto de discórdia é o fato de o ministro Alexandre de Moraes concentrar diversas etapas do processo. Ele autorizou buscas, quebras de sigilo, prisões, analisou relatórios da Polícia Federal, encaminhou documentos à Procuradoria-Geral da República e agora participa do julgamento de mérito.


Welington Arruda alerta para os riscos dessa concentração de funções, uma vez que o juiz também atuou como órgão de investigação. Já Marcelo Crespo relembra que essa centralização começou em 2019, quando Dias Toffoli indicou Moraes como relator do inquérito das fake news, sem sorteio, o que feriria as regras tradicionais do processo penal.


3. Julgamento na Primeira Turma divide opiniões


A escolha da Primeira Turma do STF, formada por apenas cinco ministros, para julgar Bolsonaro também causa questionamentos. Crimes de alta gravidade, como tentativa de golpe e abolição violenta do Estado Democrático de Direito, segundo Renato Vieira, deveriam ser analisados pelo Plenário, que reúne os 11 ministros da Corte.


Vieira questiona: “Faz sentido julgar crimes tão graves com apenas cinco ministros?”. Por outro lado, Marcelo Crespo lembra que há jurisprudência recente permitindo que casos assim sejam apreciados pelas turmas, mesmo que o ideal fosse o julgamento no colegiado completo.


Além disso, Welington Arruda destaca outro possível problema: a sobreposição de crimes, com penas de diferentes tipos penais somadas de forma controversa. Segundo ele, há juristas que defendem que um crime deveria ser absorvido pelo outro, evitando punição em duplicidade.


4. Cerceamento de defesa preocupa juristas


Especialistas também questionam a forma como os réus foram divididos em núcleos separados no processo. De acordo com Renato Vieira, isso restringiu o direito à ampla defesa, já que réus de um grupo não puderam participar das audiências dos outros.


Um exemplo citado é o do ex-diretor da PRF, Silvinei Vasques, alocado em um núcleo distinto de Bolsonaro. Como as acusações contra Vasques envolvem decisões atribuídas ao então presidente, a defesa de Bolsonaro foi impedida de questionar provas diretamente relacionadas.


Além disso, houve situações em que documentos importantes foram incluídos no processo apenas um dia antes das audiências, o que prejudicou o preparo das defesas.


5. Condução da delação de Mauro Cid é vista como irregular


A audiência de 19 de novembro de 2024, em que o ex-ajudante de ordens Mauro Cid prestou depoimento, também é alvo de críticas. Renato Vieira afirma que o ministro Alexandre de Moraes violou a Lei da Delação Premiada ao fazer perguntas de mérito diretamente ao delator — quando, por lei, sua função seria apenas verificar a voluntariedade do acordo.


Foi nesse momento que Cid revelou detalhes sobre o suposto plano “Punhal Verde e Amarelo”, que incluía até o assassinato de Lula. Para Vieira, o modo como o depoimento foi conduzido compromete a validade da delação e pode ser considerado vício processual.


6. Apreensão de celulares de advogados gera alerta


A decisão de Alexandre de Moraes de autorizar a apreensão dos celulares de advogados ligados ao caso também levantou questionamentos. A criminalista Priscila Pamela Santos alerta que essa medida pode comprometer o exercício do direito de defesa, pilar fundamental do processo penal democrático.


Segundo ela, embora o caso envolva crimes graves e um contexto atípico, a atuação do STF deve respeitar os limites legais. A apreensão de aparelhos de advogados pode abrir precedentes perigosos e afetar o sigilo profissional.


7. Prisão domiciliar sem justificativa clara


Por fim, a prisão domiciliar de Bolsonaro, determinada após ele aparecer em vídeos publicados nas redes sociais dos filhos, também é criticada. Para Maíra Beauchamp Salomi, não há provas de que o ex-presidente tivesse conhecimento ou tenha ordenado a publicação dos conteúdos — o que enfraquece o argumento de descumprimento das cautelares.


Além disso, ela aponta que a prisão domiciliar foi imposta sem base legal clara, já que o Código de Processo Penal só admite essa medida em situações específicas, como doença grave, idade avançada ou responsabilidade por filhos pequenos. Se houve descumprimento, o correto, segundo Salomi, seria decretar prisão preventiva, com possibilidade de a defesa pedir conversão para domiciliar, caso atendesse aos critérios.



O julgamento no STF promete marcar um dos capítulos mais complexos da história recente da Justiça brasileira — não apenas pelo conteúdo das acusações, mas pela forma como o Judiciário tem lidado com seus próprios limites institucionais.

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