Para uns foi "Golpe",  para outros foi "Revolução": 60 Anos do 31 de Março de 64

No amanhecer de 31 de março de 1964, o Brasil se deparou com um dos episódios mais controversos e definidores de sua história moderna. O que começou com a remoção do presidente João Goulart do poder evoluiu para um regime militar que duraria até 1985. Hoje, sessenta anos depois, o evento ainda provoca intensos debates, sendo classificado por uns como "Golpe" e por outros como "Revolução". Esta matéria especial busca explorar a complexidade desse período, seus impactos duradouros na sociedade brasileira e como ele ainda inflama as divisões políticas atuais.

O contexto

Naquele final de março de 1964, o Brasil vivia um período de intensa agitação política e social. João Goulart, popularmente conhecido como Jango, assumira a presidência em condições controversas, após a renúncia de Jânio Quadros. Seu governo, marcado por uma agenda progressista e reformista, despertou a preocupação de setores conservadores da sociedade, incluindo as forças armadas.

A tensão culminou na madrugada de 31 de março, quando militares, com o apoio de parte da sociedade civil e da mídia, iniciaram um movimento que resultaria na deposição de Goulart. Sem resistência significativa, o movimento consolidou-se nas horas e dias subsequentes, marcando o início de um período autoritário que se estenderia por duas décadas.

Duas décadas de regime militar

Sob o regime militar, o Brasil experimentou um crescimento econômico significativo, mas a um custo social e político elevado. A censura, a perseguição a opositores, a tortura e outras violações dos direitos humanos tornaram-se marcas registradas do período. 

Além disso, a suspensão das eleições diretas para presidente durante esse tempo deixou cicatrizes profundas na democracia brasileira.

Governo Marechal Humberto de Alencar Castelo Branco (1964-1967)

Contexto Político e Econômico:

• Início formal do regime militar após o golpe de 1964.
• Implementação de reformas econômicas e institucionais, incluindo a reforma bancária e a criação do Banco Central.

Eventos Históricos:

• 1964: Golpe militar que depõe João Goulart. Aprovação do Ato Institucional Número 1 (AI-1).
• 1965: Ato Institucional Número 2 (AI-2) institui o bipartidarismo, extinguindo os partidos políticos existentes.

Cultura e Sociedade:

• Música: Surgimento da Jovem Guarda, com Roberto Carlos como um dos principais expoentes.
• TV: Consolidação da telenovela como fenômeno cultural, com "O Direito de Nascer" ganhando popularidade.
• Cinema: "Deus e o Diabo na Terra do Sol" de Glauber Rocha, marco do Cinema Novo.
• Moda: Influência da moda internacional com o uso de minissaias e os primeiros passos da moda praia brasileira.
• Carros: Além do Fusca, o DKW-Vemag se destaca entre os mais vendidos.

Governo Marechal Arthur da Costa e Silva (1967-1969)

Contexto Político e Econômico:

• Promulgação da Constituição de 1967, consolidando aspectos autoritários do regime.
• Economia ainda em crescimento, mas com as primeiras sinalizações de desequilíbrio.

Eventos Históricos:

• 1968: Passeata dos Cem Mil no Rio de Janeiro, manifestação massiva contra o regime.
• 1968: Edição do Ato Institucional Número 5 (AI-5), marcando o início do período mais repressivo do regime.

Cultura e Sociedade:

• Música: Auge do Tropicalismo, movimento musical e cultural liderado por Caetano Veloso e Gilberto Gil.

• "Pra Não Dizer que Não Falei das Flores", de Geraldo Vandré. Lançada em 1968, tornou-se um hino contra a ditadura militar
  TV: Expansão da televisão a cores no Brasil, ainda que incipiente.
• Cinema: "Terra em Transe", outra obra-prima de Glauber Rocha.
• Moda: A moda unissex começa a ganhar espaço, com homens e mulheres adotando calças jeans e camisetas.
• Carros: O Ford Galaxie ganha popularidade, simbolizando o luxo acessível.

Governo General Emílio Garrastazu Médici (1969-1974)

Contexto Político e Econômico:

• Este período é conhecido como os "anos de chumbo", caracterizado pela severa repressão política, censura e perseguição a opositores do regime.
• O Brasil viveu o chamado "Milagre Econômico", com taxas de crescimento do PIB entre 8% a 10% ao ano, mas acompanhado de aumento da desigualdade social e concentração de renda.

Eventos Históricos:

• 1970: O Brasil venceu a Copa do Mundo de Futebol no México, conquistando seu tricampeonato com Pelé, Jairzinho, Tostão, entre outros.

• Este evento trouxe um sentimento de orgulho e união nacional, apesar do contexto político.

Cultura e Sociedade:

• Música: A Tropicália continuava a influenciar a música brasileira, mesmo após a saída de muitos artistas para o exílio, como Caetano Veloso e Gilberto Gil. No cenário internacional, os sucessos incluíam bandas como The Beatles, que anunciaram sua separação em 1970, e o surgimento do rock progressivo.

• TV: As novelas começaram a se consolidar como um dos principais entretenimentos do brasileiro, com destaques para "Irmãos Coragem" (1970) e "Selva de Pedra" (1972).
• Cinema: O cinema brasileiro vivia o auge do Cinema Novo, com Glauber Rocha como um de seus principais expoentes. Internacionalmente, filmes como "O Poderoso Chefão" (1972) marcaram época.
• Moda: A moda era influenciada pelo estilo hippie, com uso de jeans, camisetas tie-dye, e o cabelo longo, tanto para homens quanto para mulheres.
• Carros: O Fusca, da Volkswagen, continuava a ser um dos carros mais vendidos no Brasil, simbolizando a motorização da classe média.

Governo General Ernesto Geisel (1974-1979)

Contexto Político e Econômico:

• Início da abertura política, ainda que lenta e controlada.
• Primeiros impactos da crise do petróleo de 1973, afetando a economia brasileira.

Eventos Históricos:

• 1974: Geisel toma posse prometendo uma "abertura política lenta, gradual e segura".
• 1978: Fim do AI-5.

Cultura e Sociedade:

• Música: Ascensão do rock brasileiro, com bandas como Secos & Molhados.
• TV: "Escrava Isaura" (1976), novela de grande sucesso.

• Anúncio da novela “Escrava Isaura”, da Rede Globo
•  
• Cinema: O cinema brasileiro enfrenta dificuldades, mas surgem filmes importantes como "Dona Flor e Seus Dois Maridos" (1976).
• Moda: A disco influencia a moda, trazendo brilho, lantejoulas e calças boca-de-sino.
• Carros: O Chevrolet Opala se consolida como um dos carros mais desejados.

Governo General João Baptista de Oliveira Figueiredo (1979-1985)

Contexto Político e Econômico:

• Continuação e aceleração da abertura política.
• Crise econômica agravada, com altas taxas de inflação e dívida externa crescente.

Eventos Históricos:

• 1984: Campanha das Diretas Já, mobilização massiva por eleições diretas para presidente, que, apesar de não conseguir aprovar a emenda, marca profundamente o país.
• 1985: Transição para o governo civil, com a eleição indireta de Tancredo Neves.

Cultura e Sociedade:

• Música: A música popular brasileira (MPB) se destaca com artistas como Elis Regina e Milton Nascimento.

• Elis Regina - O bêbado e a equilibrista
  TV: Crescimento da televisão com novelas de grande sucesso como "Dancin' Days" (1978).
• Cinema: "Eu Te Amo" (1981) de Arnaldo Jabor, reflete as transformações sociais e afetivas do período.
• Moda: A moda é influenciada pela estética punk e new wave, com o uso de peças de couro e cabelos coloridos.
• Carros: O Volkswagen Gol é lançado, tornando-se rapidamente um dos carros mais vendidos no país.

Em todo o período, Roberto Carlos sonorizou a trilha sonora de quem “apenas queria viver”
Uns mais engajados aos temas políticos, outros pareciam mais cientes de que a vida é finita e independentemente do regime político queriam viver os amores, as dores, as alegrias,  idas e vindas.

A disputa de narrativas segue até hoje

A forma como esse período da história brasileira é interpretado varia grandemente. Enquanto alguns o veem como necessário para evitar uma suposta ameaça comunista, outros o condenam como um ataque direto à democracia e aos direitos humanos. Essa disputa de narrativas reflete-se no debate político contemporâneo, especialmente entre as alas de esquerda e direita do espectro político brasileiro.

O Brasil atual: entre o passado e o futuro

A polarização observada nas recentes eleições presidenciais, entre Luiz Inácio Lula da Silva e Jair Messias Bolsonaro, é, em muitos aspectos, um eco das divisões que têm raízes no período do regime militar. A memória e as interpretações do que aconteceu em 31 de março de 1964 continuam a influenciar não apenas a política, mas também a forma como a sociedade brasileira vê a si mesma e seu futuro.