Educação

Aluna cotista perde vaga em Medicina por não ser considerada parda e é aprovada em outra universidade

Após perder vaga na UFF e enfrentar batalhas judiciais, Samille Ornelas realiza sonho e se matricula em medicina na Bahia

31/10/2025 às 11:09 por Redação Plox

Samille Ornelas, de 31 anos, passou por um intenso processo até garantir sua vaga em Medicina por meio do sistema de cotas raciais. Baiana, ela já havia sido aprovada via Sisu na Universidade Federal Fluminense (UFF), mas perdeu a vaga após o comitê de heteroidentificação da instituição e a Justiça considerarem que ela não apresentava “características fenotípicas” de pessoa parda. Meses depois, Samille celebrou uma nova conquista: foi aprovada, também por cotas, na Universidade Federal do Oeste da Bahia (UFOB).

Samille conquistou a aprovação em Medicina na UFOB

Samille conquistou a aprovação em Medicina na UFOB

Foto: Arquivo pessoal

Reviravolta após caso polêmico na UFF

Em agosto, Samille relatou ao g1 que aguardava uma definição judicial referente à sua vaga perdida na UFF. Segundo contou, a universidade não deu margem para diálogo e o processo seguia aguardando julgamento. Porém, enquanto esperava por uma decisão, foi surpreendida ao ser chamada pela UFOB, instituição na qual havia realizado inscrição no início do ano e já nem lembrava da candidatura. “Passei agora, na 9ª lista de aprovados”, celebrou.

Ao receber o telefonema da universidade baiana, Samille chegou a pensar que se tratava de um golpe, reflexo do trauma vivido no caso da UFF e de um episódio em que se tornou vítima de estelionato, perdendo R$ 5,5 mil a supostos advogados que prometeram ajudá-la judicialmente.

Impactos emocionais e superação

Mesmo diante das negativas, Samille não desistiu de estudar medicina. Enquanto buscava reverter a decisão na Justiça, retomou os estudos para o Enem. O período foi marcado por dificuldades emocionais: a jovem entrou em depressão profunda, desenvolveu estresse pós-traumático, crises de ansiedade, queda de cabelo e lesões na pele. Foi somente ao receber a convocação da UFOB que voltou a se olhar no espelho e sentir esperança.

Com apoio de amigos e familiares, Samille conseguiu se deslocar até Barreiras, cidade onde fica a UFOB, para não perder o primeiro dia de aula. A matrícula foi feita em setembro, novamente pelo sistema de cotas, com toda a documentação exigida e avaliação pela banca de heteroidentificação, desta vez sem transtornos. Ela relata, porém, que o simples recebimento de e-mails da universidade ainda desencadeia crises de ansiedade, efeito dos episódios anteriores.

“Só pedia a Deus: me tire do lugar onde eu estou. Faça algo extraordinário na minha vida.”

Motivações e homenagens familiares

No último ano, Samille sofreu perdas pessoais importantes, como a morte da avó e do pai, que não puderam vê-la realizando o sonho de usar um jaleco branco. Ela destaca também a vontade de homenagear o avô, falecido após um infarto sem diagnóstico precoce devido à falta de acesso à saúde na região onde morava. “Aqui na UFOB, eu vou lidar com quem também mora longe de centros urbanos. Nesta semana, vamos visitar um posto de saúde rural e uma aldeia indígena. Estou muito animada”, revelou.

Entre seus propósitos na medicina está o compromisso de atuar por quem enfrenta dificuldades de acesso aos serviços de saúde.

O processo de perda da vaga na UFF

Samille ingressou no Sisu concorrendo a uma vaga para pretos e pardos, com renda familiar per capita inferior a 1,5 salário-mínimo, e seguiu o edital ao enviar um vídeo curto para análise do comitê de heteroidentificação. O material foi avaliado e resultou em sua exclusão do sistema de cotas.

Ela recorreu à instituição e enviou nova documentação, incluindo fotos de várias fases da vida e comprovante de conclusão em biomedicina pelo Prouni também como cotista. A UFF manteve o parecer e registrou que “não foram encontradas as características fenotípicas de uma pessoa parda”.

Após ingressar na Justiça, Samille conseguiu liminar para matrícula em janeiro de 2025. Em poucos dias, mudou-se para o Rio de Janeiro, logo após perder o pai. A permanência, porém, durou apenas um semestre: a liminar foi cassada, restando apenas duas provas para ela concluir o 1º período.

Ao tentar acessar o sistema da universidade, Samille descobriu que todos os seus dados haviam sido apagados, restando somente o aviso de matrícula cancelada. “Minha vida toda está assim, bagunçada, destruída, baseada em um vídeo de 17 segundos. Ninguém me viu para dizer se sou parda: nem a banca, nem a Justiça.”

Como funcionam os comitês de heteroidentificação

Universidades públicas brasileiras, ao aderirem à política de cotas, podem realizar apenas a autodeclaração ou adotar comitês de heteroidentificação para aferir se o candidato tem direito aos benefícios. Esses comitês, geralmente compostos por cinco pessoas, avaliam ao vivo as características fenotípicas – aparência física – do estudante, não sua ancestralidade.

No caso da UFF, a avaliação é feita por vídeo, seguindo determinações do edital do Sisu. O Supremo Tribunal Federal já validou esse tipo de verificação, e portarias federais determinam que, na aferição, apenas o critério fenotípico deve ser considerado.

Detalhes do laudo antropológico

Buscando reverter a decisão judicial, Samille chegou a realizar uma avaliação com antropólogo, a pedido de seus advogados. Foram analisados traços faciais e o formato do crânio para tentar comprovar suas características de pessoa parda. Mesmo assim, o laudo não foi suficiente para reverter o processo.

Posicionamento da UFF sobre o caso

Em nota oficial divulgada em agosto de 2025, a Universidade Federal Fluminense informou que o caso de Samille Ornelas está sob análise judicial e que cumpre integralmente as decisões do Poder Judiciário. A universidade destacou que Samille foi considerada inapta por duas comissões independentes, compostas por membros capacitados e com formação específica em letramento racial.

A instituição reafirmou o compromisso com a implementação das políticas de reserva de vagas no ensino superior, enfatizando a transparência e conformidade com a legislação vigente em todos os processos seletivos.

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